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A história da Hesperidina

Meu avô paterno cheirava a charuto. Meu avô materno cheirava a Hesperidina.

Se você é ansioso e já deu um Google, descobriu que Hesperidina é um flavonoide encontrado em frutas cítricas, vendido como remédio para varizes, hemorroidas, fortalecimento do sistema circulatório. Mas, antes de sair correndo para a farmácia, fique sabendo: o medicamento tem o mesmo efeito de placebo, ou seja, não funciona – acabei de ler em uma nota técnica da Anvisa. E, antes que a gente descubra que existem por aí hesperediners, já aviso: este texto não é sobre sistema circulatório. É sobre trago, marketing e design.

Hesperidina é também o nome de um um bitter argentino que, para meu avô, era o néctar dos deuses. Tem o mesmo nome do remédio, porque, enfim, contém o aroma e o sabor extraído daquela parte branca por baixo da casca da laranja, de onde vem a hesperidina. Para ser mais preciso, se chamava Hesperidina Bagley, a bebida, pois foi formulada e lançada em 1864 pelo americano Melville Bagley, em Buenos Aires, Argentina.

Foto: reprodução De Historias y Pueblo

Ainda não descobri se este cara era um gênio da coquetelaria, mas sabemos que era um gênio do marketing. Sabe teaser, aquela peça inicial que antecede uma campanha, dando uma pista, um spoiler, do que vem pela frente, sem revelar tudo? Ele foi o rei do teaser. Antes de distribuir o seu trago nos bolichos e pulperias portenhos, encheu a cidade de cartazes e pintou calçadas com apenas uma palavra: “Hesperidina”. Só. Foram semanas com os argentinos lendo aquilo sem saber o que era, até que as garrafas fossem distribuídas. Quando chegaram aos balcões, consagração! Mesmo depois do lançamento, o produto continuou a produzir peças clássicas de publicidade, até hoje compradas em antiquários e com cópias vendidas para quem ama propaganda retrô.

Até aqui a história já estava boa, porém, nosso amigo Bagley fez um drink tão agradável que, pronto, estava todo mundo o imitando. E usando o nome, como se fosse genérico. Podemos imaginar que ele não ficou feliz. Fosse um cara comum, só resmungaria. Como gozava de algum prestígio, foi reclamar direto com o Presidente da Argentina, Nicolas Avellaneda, aquele mesmo que dá nome à cidade do Racing e do Independiente. Em 1876, então, o país criou seu órgão oficial de Marcas e Patentes. Marca número um registrada na Argentina: Hesperidina Bagley! Aposto que esta nem minha sogra Beth Ritter, su-mi-da-de em propriedade intelectual, sabia.

Meu avô José – também conhecido como Doutor Pombo – tinha cheiro de Hesperidina. Transpirava Hesperidina. Mas não é como se víssemos Hesperidina por toda parte pela casa, brindássemos em família com Hesperidina. Não! A Hesperidina era dele. Eu mesmo não lembro de ter provado. À época, achava que era porque ninguém gostava do trago. Hoje, creio que havia uma certa tensão da família relacionada a excessos alcoólicos de vovô. Até porque ele começava a exalar Hesperidina a partir das dez manhã. Na verdade, minha lembrança é de que ele literalmente transpirava Hesperidina. Saía Hesperidina pelos poros. Era agradável, até. Entre mil tragos que se pode cheirar a, diria que Hesperidina está entre os mais agradáveis. O puro aroma de laranjas douradas do Jardim de Hespérides. Mas este texto não é sobre mitologia.

Até lutar pelo registro de sua marca, Bagley empreendeu diversos esforços para se diferenciar. Mandou imprimir o rótulo em Nova York, com a mesma tecnologia que imprimia o dólar. Numerou garrafas. Acredito que foi com o mesmo intuito de se diferenciar dos falseadores que passou a adotar um design único de embalagem. A garrafa de Hesperidina é marrom e bojudinha. Típica. Única. Pela silhueta, os fãs do trago conseguiram identificá-la, bem pequenina, no fundo de um bolicho pintado pelo Molina Campos. Estou até agora procurando a garrafa na cena, mas eles já saíram gritando: Molina pintou a Hesperidina!

Molina pintou a Hesperidina é o equivalente platino de dizer: Da Vinci pintou a Última Ceia!


Foto: Canale Ybarra, Creative Commons

Meu avô, um homem fronteiriço, comprava o bitter em caixas. Em São Borja (RS), divisa com a Argentina, creio. Até pouco tempo, eu achava que era uma bebida comum, encontrada em qualquer boteco da Terra dos Presidentes. Descobri há apenas dois meses que não é assim. Primeiro, busquei no Mercado Livre: zero anúncios brasileiros. Depois fui a trabalho a São Borja e prometi que voltaria com uma garrafa para casa. Achei que, perguntando, se encontrava. Mas o taxista, o recepcionista do hotel, o caixa do supermercado, ninguém sequer tinha ouvido falar de Hesperidina. Andei de bar em bar no centro. Perguntei a bolicheiros e gambás, moços e velhos. Nada!

Não se encontra Hesperidina no Brasil. Na Argentina, dizem que ainda existe. E mais: vem ganhando algum status entre as novas gerações, inserida em drinks originais criados por mixologistas contemporâneos e apaixonados por coquetelaria.

Agora eu pergunto: o que estamos esperando para fazer da Hesperidina grande de novo? Tanto produto tendo de inventar uma história – um nonno que criou uma receita única de sorvete nos Alpes, um caipira que colhe as melhores laranjas de São Paulo… – e tanto produto com lindas histórias a serem contadas e recontadas. Ainda verei a Hesperidina na prateleira, lado a lado com o sabonete Granado, a manteiga Aviação, a Maizena e o Campari. Se alguém trouxer pro Brasil, conte comigo para a campanha publicitária!

Antes disso, preciso só provar o néctar. Final do mês, volto a São Borja. Desde já, estou em busca de um chibeiro. Se não encontrar, cruzo a ponte. Há de ter Hesperidina em algum bolicho de São Tomé. Preciso provar esse trago. Saber que gosto tem. Em homenagem ao Doutor Pombo.